“É preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança”. (Nietzsche)
...cedo
chegamos ao Juliano, chovia tanto que parecia que nunca mais iria parar
de chover, o pessoal da limpeza corria com baldes, panos, rodos, mas
não davam conta da água que invadia pelo velho telhado, já retalhado
pela história e pela gurizada das vizinhanças que usa como base para
soltar pipas e fazer trocas, novas formas de escambo, outras drogas não
prescritas.
Subíamos a rampa em direção à internação, e a água fazia caminho inverso, então pensei: não há água que baste para limpar as sujeiras
do manicômio. Pouco mais adiante, no “portão-do-meio”, alguém disse:
todo ano é assim, sempre chove no dia da parada. Olho em direção à
internação e vejo todos os portões fechados, me lembro que faz parte da
rotina matinal para injetar prescrições e engessar os corpos. Lá de
dentro, Valdemir me vê e grita, “pera aí, doutor, que vou buscar a
chave”. Fora o “doutor”, que me incomoda - e por mais que a gente fale
sobre isso, sempre retorna como uma espécie de significante estruturante
do manicômio -, tive uma recepção calorosa, carinhosa mesmo, eu diria.
Portões
adentro, seguimos, víamos poucas pessoas em meio a poças d'água que
continuavam a crescer. Faz tempo que a direção do Juliano diz que vai
consertar o telhado, mas só depois que subirem o muro mais alguns
metros, argumentam. É uma tentativa louca de impedir que a gurizada suba
no telhado, ou seja, noção nenhuma de articulações comunitárias, mas
que no fundo serve apenas para aumentar a quantidade de ferro e concreto
entre o dentro e o fora. Se o muro subir tanto quanto querem alguns, se
quer veremos mais a bela e dura estética da favela na qual o manicômio
está incrustado, e por mais louco que pareça, é uma paisagem que
sustenta uma possibilidade do fora. Vira e mexe alguém dá um drible e
sai favela afora.
Mas, enfim, portões adentro, seguimos para a enfermaria, e me lembrei de Pirandello no conto A luz da outra casa... pouca
luz entrando pelas frestas, o pessoal, em sua maior parte, dormindo,
afinal, o clima estava favorecendo. E havia uma frieza maior, própria
daquele lugar, a frieza do abandono, da exclusão, da reclusão. Não há
cobertores, usam alguns finos lençóis, não há casacos, apenas o
tradicional abadá do HJM, uma estética daqueles sacos de estopa para
guardar cereais e que serve para compor o processo de des-subjetivação
próprio ao manicômio. Mas o povo resiste, as meninas rasgam as blusas e
amarram com muito cha
rme, outros dão nós pelas pontas e, então, alguma subjetividade
sobrevive à força do revide desejante, protestos do inconsciente. Nesta
cena fria da enfermaria, confesso que fiquei meio sem graça de acordar o
pessoal, dizer o que? Vamos ao farol da Barra, na chuva, pra você
sentir o gostinho do vento-brisa e depois voltar para as grades? Mas
pensei na força do ato político, e também pensei que qualquer coisa que
tire as pessoas lá de dentro, por pouco tempo que seja, é sempre bom,
sobretudo pelo efeito dos encontros possíveis.
Terminada
a rodada medicamentosa matinal, procuramos roupas, e Tito me disse:
Wagner, consiga uma camisa bacana pra eu vestir. E Sine, ao lado,
generosamente emprestou uma camisa bacana, de mangas compridas, bem
apropriada à ocasião. Então, começamos a descer a rampa, e fomos
encontrando o pessoal dos outros módulos, até que chegamos na porta da
emergência, ironicamente a única saída possível nos fins de semana, logo
ela, a porta-arapuca da captura. Ali encontramos mais uma turma da
oficina de música, que saiu cedo de casa, na chuva, motivada a fazer um
som no farol da Barra, oportunidade rara, pois o farol clareia mais as
estrelas do axé que a entrada da baia de todos os santos. Debaixo de uma
tempestade, sem guarda-chuva, seguimos até o ônibus, que nos esperava
na rótula de Narandiba. Muitos técnicos do hospital, alguns vigilantes à
paisana, e
se compôs a massa rumo ao farol. Fui seguindo de carro, que mal me
cabia, porque os equipamentos do bando lotavam a mala e os bancos –
guitarra, baixo, bateria, percussões, cabos, caixa de som, etc, e olha
que uma parte das coisas estava no carro de Diogo.
Chegamos
ao farol da Barra, já havia uma pequena movimentação e o pessoal da
Luta estava preocupado porque até então só havia um carro de som. Então
disse: vamos conseguir um ponto de luz, porque nós trouxemos caixas de
som e o equipamento pra tocar. Alguém respondeu, não há ponto de luz.
Pensei, vamos fazer um “gato”,
mas logo desisti, já que com meu conhecimento em eletricidade, somado à
chuva que caía, o máximo que eu conseguiria seria tomar um ECT no
farol. Então, Lucas, sujeito engenhoso, perguntou ao cara do carro de
som quantas entradas havia no equipamento. E o cara disse: duas. E
respondeu Lucas: ótimo, ligamos o microfone e a guitarra e colocamos a
bateria em cima do carro de som. O c ara não
acreditou...rs e assim fizemos. Juntamos a galera, pegamos os
equipamentos, e em pouco tempo já havia sonoridades no farol. Gilvan
cantou seus rap's, e a coisa foi aquecendo. A essa altura mais gente já havia chegado e o clima foi se construindo.
Microfone
disputado tanto quanto na oficina de música na internação do Juliano,
se alternavam músicas e falas, uns mais afeitos à música, outros à fala.
Entre Amado Batista e Cássia Eller, palavras de ordem, palavras de
outra ordem e outras palavras. E chegava mais gente, estudantes de
diversas faculdades, usuários e trabalhadores dos CAPS dos diversos
cantos da cidade e da Bahia, e o encontro foi ganhando potência. E teve
um momento em que algo foi dito para além dos discursos, uma harmonia
dissonante, uma expressão “corpomúsica” que tomou conta do farol. Nem
precisa falar que alguém gritou: toca Raul... e a Sombra Sonora tocou, e
Pietro do Pirigulino tocou, e o povo cantou e dançou. Entre tantos, o
pessoal do bando Flores da Massa foi tocando, cantando, dançando e
realizando o sonho antigo de tocar no farol com o pessoal da Lut
a Antimanicomial. Ano passado estivemos lá, com todo o equipamento, mas
a nau já
estava lotada, e o bando não pôde subir no trio. Esse ano não havia
trio elétrico, então, inventamos um trio lá na hora, mas com a dignidade
de termos sido convidados e com direito ao nome Flores da Massa
impresso no cartaz da programação, ao que agradecemos ao Coletivo da
Luta, especialmente porque nos sentimos parte dessa luta. Ao mesmo
tempo, começou uma roda de samba linda, esse “mexe remexe as cadeiras”
que tem a força ancestral do recôncavo.
Ato político sim, para dizer não à segregação e ao preconceito, para registrar-mostrar à sociedade e aos burrocratas
de plantão na gestão da saúde municipal e estadual o quão ridículos são
seus discursos e suas práticas, que servem apenas para corroborar a
ineficiência e a incompetência destes que só querem se manter no poder, e
que desta maneira servem à manutenção do preconceito social e da
exclusão. Ato político que fortalece a histórica Luta Antimanicomial na
Bahia, que dá força à organização coletiva dos usuários e dos
trabalhadores e que mantém acesa a luz no horizonte do possível, e
porque não dizer do impossível, com a licença da loucura nossa de cada
dia.
Foi
lindo no farol, expressão-desejante, polifonia dos afetos... as flores
da massa brilharam sob o céu da Barra, porque a massa é o povo...
Alguém
me perguntou: porque vocês insistem em fazer uma oficina de música na
internação do manicômio? Vocês estão querendo consertar o manicômio? Não
respondi naquele momento, mas poderia dizer: porque, ao final da
manifestação, o ônibus do Juliano Moreira encostou, e as pessoas
entraram, e retornaram para as grades... e elas continuam lá... até
quando? Ou poderia apenas responder: porque “sem música, a vida seria um
erro".(Nietzsche)
Wagner de Angeli Ferraz,
Psicólogo da internação do Juliano Moreira,
Onde nasceu o bando Flores da Massa.
Sensacional, adoro o meu terapeuta Wagner Ferraz.
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