segunda-feira, 21 de maio de 2012

LOUCURAS A CÉU ABERTO


É preciso muito caos interior para parir uma estrela que dança”. (Nietzsche)

...cedo chegamos ao Juliano, chovia tanto que parecia que nunca mais iria parar de chover, o pessoal da limpeza corria com baldes, panos, rodos, mas não davam conta da água que invadia pelo velho telhado, já retalhado pela história e pela gurizada das vizinhanças que usa como base para soltar pipas e fazer trocas, novas formas de escambo, outras drogas não prescritas.
Subíamos a rampa em direção à internação, e a água fazia caminho inverso, então pensei: não há água que baste para limpar as sujeiras do manicômio. Pouco mais adiante, no “portão-do-meio”, alguém disse: todo ano é assim, sempre chove no dia da parada. Olho em direção à internação e vejo todos os portões fechados, me lembro que faz parte da rotina matinal para injetar prescrições e engessar os corpos. Lá de dentro, Valdemir me vê e grita, “pera aí, doutor, que vou buscar a chave”. Fora o “doutor”, que me incomoda - e por mais que a gente fale sobre isso, sempre retorna como uma espécie de significante estruturante do manicômio -, tive uma recepção calorosa, carinhosa mesmo, eu diria.
Portões adentro, seguimos, víamos poucas pessoas em meio a poças d'água que continuavam a crescer. Faz tempo que a direção do Juliano diz que vai consertar o telhado, mas só depois que subirem o muro mais alguns metros, argumentam. É uma tentativa louca de impedir que a gurizada suba no telhado, ou seja, noção nenhuma de articulações comunitárias, mas que no fundo serve apenas para aumentar a quantidade de ferro e concreto entre o dentro e o fora. Se o muro subir tanto quanto querem alguns, se quer veremos mais a bela e dura estética da favela na qual o manicômio está incrustado, e por mais louco que pareça, é uma paisagem que sustenta uma possibilidade do fora. Vira e mexe alguém dá um drible e sai favela afora.
Mas, enfim, portões adentro, seguimos para a enfermaria, e me lembrei de Pirandello no conto A luz da outra casa... pouca luz entrando pelas frestas, o pessoal, em sua maior parte, dormindo, afinal, o clima estava favorecendo. E havia uma frieza maior, própria daquele lugar, a frieza do abandono, da exclusão, da reclusão. Não há cobertores, usam alguns finos lençóis, não há casacos, apenas o tradicional abadá do HJM, uma estética daqueles sacos de estopa para guardar cereais e que serve para compor o processo de des-subjetivação próprio ao manicômio. Mas o povo resiste, as meninas rasgam as blusas e amarram com muito cha rme, outros dão nós pelas pontas e, então, alguma subjetividade sobrevive à força do revide desejante, protestos do inconsciente. Nesta cena fria da enfermaria, confesso que fiquei meio sem graça de acordar o pessoal, dizer o que? Vamos ao farol da Barra, na chuva, pra você sentir o gostinho do vento-brisa e depois voltar para as grades? Mas pensei na força do ato político, e também pensei que qualquer coisa que tire as pessoas lá de dentro, por pouco tempo que seja, é sempre bom, sobretudo pelo efeito dos encontros possíveis.
Terminada a rodada medicamentosa matinal, procuramos roupas, e Tito me disse: Wagner, consiga uma camisa bacana pra eu vestir. E Sine, ao lado, generosamente emprestou uma camisa bacana, de mangas compridas, bem apropriada à ocasião. Então, começamos a descer a rampa, e fomos encontrando o pessoal dos outros módulos, até que chegamos na porta da emergência, ironicamente a única saída possível nos fins de semana, logo ela, a porta-arapuca da captura. Ali encontramos mais uma turma da oficina de música, que saiu cedo de casa, na chuva, motivada a fazer um som no farol da Barra, oportunidade rara, pois o farol clareia mais as estrelas do axé que a entrada da baia de todos os santos. Debaixo de uma tempestade, sem guarda-chuva, seguimos até o ônibus, que nos esperava na rótula de Narandiba. Muitos técnicos do hospital, alguns vigilantes à paisana, e se compôs a massa rumo ao farol. Fui seguindo de carro, que mal me cabia, porque os equipamentos do bando lotavam a mala e os bancos – guitarra, baixo, bateria, percussões, cabos, caixa de som, etc, e olha que uma parte das coisas estava no carro de Diogo.
Chegamos ao farol da Barra, já havia uma pequena movimentação e o pessoal da Luta estava preocupado porque até então só havia um carro de som. Então disse: vamos conseguir um ponto de luz, porque nós trouxemos caixas de som e o equipamento pra tocar. Alguém respondeu, não há ponto de luz. Pensei, vamos fazer um “gato, mas logo desisti, já que com meu conhecimento em eletricidade, somado à chuva que caía, o máximo que eu conseguiria seria tomar um ECT no farol. Então, Lucas, sujeito engenhoso, perguntou ao cara do carro de som quantas entradas havia no equipamento. E o cara disse: duas. E respondeu Lucas: ótimo, ligamos o microfone e a guitarra e colocamos a bateria em cima do carro de som. O c ara não acreditou...rs e assim fizemos. Juntamos a galera, pegamos os equipamentos, e em pouco tempo já havia sonoridades no farol. Gilvan cantou seus rap's, e a coisa foi aquecendo. A essa altura mais gente já havia chegado e o clima foi se construindo.
Microfone disputado tanto quanto na oficina de música na internação do Juliano, se alternavam músicas e falas, uns mais afeitos à música, outros à fala. Entre Amado Batista e Cássia Eller, palavras de ordem, palavras de outra ordem e outras palavras. E chegava mais gente, estudantes de diversas faculdades, usuários e trabalhadores dos CAPS dos diversos cantos da cidade e da Bahia, e o encontro foi ganhando potência. E teve um momento em que algo foi dito para além dos discursos, uma harmonia dissonante, uma expressão “corpomúsica” que tomou conta do farol. Nem precisa falar que alguém gritou: toca Raul... e a Sombra Sonora tocou, e Pietro do Pirigulino tocou, e o povo cantou e dançou. Entre tantos, o pessoal do bando Flores da Massa foi tocando, cantando, dançando e realizando o sonho antigo de tocar no farol com o pessoal da Lut a Antimanicomial. Ano passado estivemos lá, com todo o equipamento, mas a nau já estava lotada, e o bando não pôde subir no trio. Esse ano não havia trio elétrico, então, inventamos um trio lá na hora, mas com a dignidade de termos sido convidados e com direito ao nome Flores da Massa impresso no cartaz da programação, ao que agradecemos ao Coletivo da Luta, especialmente porque nos sentimos parte dessa luta. Ao mesmo tempo, começou uma roda de samba linda, esse “mexe remexe as cadeiras” que tem a força ancestral do recôncavo.
Ato político sim, para dizer não à segregação e ao preconceito, para registrar-mostrar à sociedade e aos burrocratas de plantão na gestão da saúde municipal e estadual o quão ridículos são seus discursos e suas práticas, que servem apenas para corroborar a ineficiência e a incompetência destes que só querem se manter no poder, e que desta maneira servem à manutenção do preconceito social e da exclusão. Ato político que fortalece a histórica Luta Antimanicomial na Bahia, que dá força à organização coletiva dos usuários e dos trabalhadores e que mantém acesa a luz no horizonte do possível, e porque não dizer do impossível, com a licença da loucura nossa de cada dia.
Foi lindo no farol, expressão-desejante, polifonia dos afetos... as flores da massa brilharam sob o céu da Barra, porque a massa é o povo...
Alguém me perguntou: porque vocês insistem em fazer uma oficina de música na internação do manicômio? Vocês estão querendo consertar o manicômio? Não respondi naquele momento, mas poderia dizer: porque, ao final da manifestação, o ônibus do Juliano Moreira encostou, e as pessoas entraram, e retornaram para as grades... e elas continuam lá... até quando? Ou poderia apenas responder: porque “sem música, a vida seria um erro".(Nietzsche)

Wagner de Angeli Ferraz, 
Psicólogo da internação do Juliano Moreira, 
Onde nasceu o bando Flores da Massa.

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